Represa de Jaguarí, em Jacareí.
É esquisita a situação de quem como eu mora no litoral.
Se por um lado, andando alguns metros, encontro literalmente um mar de água (salgada, mas água), nas rádios e redes regionais de televisão daqui e com certeza do Brasil todo, outro assunto não repercute tanto como a crise que vemos no abastecimento de água e, consequentemente, no abastecimento de energia.
Muito se tem dito por técnicos, curiosos, políticos, consumidores; análises parcialmente e interessadamente colocadas, aumentando a confusão na maioria das vezes.
Mas esse artigo, repassado por um amigo, explica muito bem,por todos os ângulos, o que passamos atualmente e o que poderemos passar no futuro, se todos os interessados realmente descruzar os braços e agir efetivamente na busca de soluções de curto, médio e longo prazo.
Ruínas da cidade de Igaratá aparecendo com a longa estiagem.
O título do artigo é "10 Mitos sobre a crise hídrica" e diz o seguinte
1- “Não choveu e por isso está faltando água”. Essa conclusão é
cientificamente problemática. Existem períodos chuvosos e de estiagem,
descritos estatisticamente. É natural que isso ocorra. A base de dados de São
Paulo possibilita análises precisas desde o século XIX e projeções anteriores a
partir de cálculos matemáticos. Um sistema de abastecimento eficiente precisa
ser projetado seguindo essas previsões (ex: estiagens que ocorram a cada cem
anos).
2- “É por causa do aquecimento global”. Existem poucos estudos
verdadeiramente confiáveis em São Paulo. De qualquer forma, o problema aqui
parece ser de escala de grandeza. A não ser que estejamos realmente vivendo uma
catástrofe global repentina (que não parece ser o caso esse ano), a mudança nos
padrões de chuva não atingem porcentagens tão grandes capazes de secar vários
reservatórios de um ano para o outro. Mais estudadas são as mudanças climáticas
locais por causa de ocupação urbana desordenada. Isso é concreto e pode trazer
mudanças radicais. Aqui o problema é outro: as represas do sistema Cantareira
estão longe demais do núcleo urbano adensado de SP para sentir efeitos como de
ilha de calor. A escala do território é muito maior.
3- “Não choveu nas Represas”. Isso é uma simplificação
grosseira. O volume do reservatório depende de vários fluxos, incluindo a chuva
sobre o espelho d’água das represas. A chuva em regiões de cabeceira, por
exemplo, pode recarregar o lençol freático e assim aumentar o volume de água
dos rios. O processo é muito mais complexo.
4- “As próximas chuvas farão que o sistema volte ao normal”.
Isso já é mais difícil de prever, mas tudo indica que a recuperação pode levar
décadas. Como sabemos, quando o fundo do lago fica exposto (e seco), ele se
torna permeável. Assim a água que voltar atingir esses lugares percola
(infiltra) para o lençol freático, antes de criar uma camada impermeável. Se eu
fosse usar minha intuição e conhecimento, diria que São Paulo tem duas opções a
curto-médio prazo: (a) usar fontes alternativas de abastecimento antes que
possa voltar a contar com as represas; (b) ter uma redução drástica em sua
economia para que haja diminuição de consumo (há relação direta entre movimento
econômico e consumo de água).
5- “Não existe outras fontes de abastecimento que não as
represas atuais”. Essa afirmação é duplamente mentirosa. Primeiro porque sempre
se pode construir represas em lugares mais e mais distantes (sobretudo em um
país com esse recurso abundante como o Brasil) e transportar a água por
bombeamento. O problema parece ser de ordem econômica já como o custo da água
bombeada de longe sairia muito caro. Outra mentira é que não podemos usar água
subterrânea. Não consigo entender o impedimento técnico disso. O Estado de São
Paulo tem ampla reserva de água subterrânea (como o chamado aquífero Guarani),
de onde é possível tirar água, sobretudo em momentos de crise. Novamente, o
problema é custo de trazer essa água de longe que afetaria os lucros da Sabesp.
6- “O aquífero Guaraní é um reservatório subterrâneo”. A ideia
de que o aquífero é um bolsão d’água, como um vazio preenchido pelo líquido, é
ridiculamente equivocada. Não existe bolsão, em nenhum lugar no mundo. O
aquífero é simplesmente água subterrânea diluída no solo. O aquífero Guaraní,
nem é mesmo um só, mas descontínuo. Como uma camada profunda do lençol
freático. Em todo caso, países como a Holanda acham o uso dessas águas tão bom
que parte da produção superficial (reservatórios etc) é reinserida no solo e
retirada novamente (!). Isso porque as propriedades químicas do líquido são,
potencialmente, excelentes.
7- “Precisamos economizar água”. Outra simplificação. Os grandes
consumidores (indústrias ou grandes estabelecimentos, por exemplo) e a perda de
água por falta de manutenção do sistema representam os maiores gastos. Infelizmente
os números oficiais parecem camuflados. A seguinte conta nunca fecha: consumo
total = esgoto total + perda + água gasta em irrigação. Estima-se que as perdas
estejam entre 30% e 40%. Ou seja, essa quantidade vaza na tubulação antes de
atingir os consumidores. Água tratada e perdida. Para usar novamente o exemplo
Holandês (que estudei), lá essas perdas são virtualmente 0%. Os índices
elevados não são normais e são resultados de décadas de maximização de lucros
da Sabesp ao custo de uma manutenção precária da rede.
8- “Não há racionamento”. O governo está fazendo a mídia e a
população de boba. Em lugares pobres o racionamento já acontece há meses, dia
sim, dia não (ou mesmo todo dia). É interessante notar que, historicamente, as
populações pobres são as que sempre sentem mais esses efeitos (cito, por
exemplo, as constantes interrupções no fornecimento de água no começo do século
XX nos bairros operários das várzeas, como o Pari). A história se repete.
9- “É necessário implantar o racionamento”. Essa afirmação é bem
perigosa porque coloca vidas em risco. Já como praticamente todas as
construções na cidade têm grandes caixas d’água, o racionamento apenas ataca o
problema das perdas da rede (vazamentos). É tudo que a Sabesp quer: em momentos
de crise fazer racionamento e reduzir as perdas; sem diminuição de consumo, sem
aumentar o controle de vazamentos. O custo disso? A saúde pública. A mesma
trinca por onde a água vaza, se não houver pressão dentro do cano, se
transformará em um ponto de entrada de poluentes do lençol freático nojento da
cidade. Estaremos bebendo, sem saber água poluída, porque a poluição entrou
pela rede urbana. Por isso que agências de saúde internacionais exigem pressão
mínima dentro dos canos de abastecimento.
10- “Precisamos confiar na Sabesp nesse momento”. A Sabesp é
gerida para maximizar lucros dos acionistas. Não está preocupada, em essência,
em entregar um serviço de qualidade (exemplos são vários: a negligência no
saneamento que polui o Rio Tietê, o uso de tecnologia obsoleta de tratamento de
água com doses cavalares de cloro e, além, da crise no abastecimento decorrente
dos pequenos investimentos no aumento do sistema de captação). A Sabesp é
apenas herdeira de um sistema que já teve várias outras concessionárias:
Cantareira Águas e Esgotos, RAE, SAEC etc. A empresa tem hoje uma concessão de
abastecimento e saneamento. Acredito que é o momento de discutir a cassação
dessa outorga, uma vez que as obrigações não foram cumpridas. Além, é claro, de
uma nova administração no Governo do Estado, ao menos preocupada em entregar
serviços público e não lucros para meia dúzia apenas.
Enfim, se eu pudesse resumir minhas conclusões: a crise no
abastecimento não é natural, mas sim resultado de uma gestão voltada para a
maximização de lucros da concessionária e de um Governo incompetente. Simples
assim, ou talvez, infelizmente, nem tanto.
Gabriel Kogan é arquiteto e jornalista, formado na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; desenvolveu mestrado em
Gerenciamento Hídrico no UNESCO-IHE (Holanda), onde pesquisou as origens
históricas das enchentes em São Paulo. (Fonte)